sexta-feira, março 23, 2007



Margarida e o desespero

Ela disse-lhe sou louca. Como quem diz tenho vinte anos, ando no liceu e gosto de cerejas.Sou louca com a ingenuidade das palavras meigas.

Ele fingiu não ouvir. Passavam um filme de Renoir na televisão por cabo e ele nunca ouvia o que ela lhe dizia.Ou se ouvia fingia que não ouvia.

Ela não desgostava deste diálogo de surdos. Permitia dizer-lhe o que lhe apetecesse como vou deixar-te quando menos esperares.Como se lhedisesse amnhã é domingo e vou fazer frango guizado com puré de batata para o almoço.

Ele engoliu o fumo que tragava teimando numa indiferença travestida de doces atenções e ia dizendo sim sim querida sim sim querida como se a ideia de ela o deixar nunca lhe tivesse passado pela cabeça ou por acreditar que tinha ouvido mal.

Ela disse-lhe sou louca e sou bem capaz de largar tudo isto e de ir rever o rio da outra margem, o mar do outro lado do oceano.

Ele não sabia da outra margem do rio nem da cor do oceano onde ela se perdia sequer dos movimentos das asas gaivotas que ela desenhava no ar quando sonhava.

Ele pensava que ela só podia caminhar nos sonhos em que ele flanava comodamente sentado no seu sofá amarelo.

Ela pegou na mala e nos livros que não lera e nas palavras que escrevera toda a vida e nas memórias de tudo o que ainda tinha por viver e nos poemas que haveriam de lhe ler.

Apenas porque estava cansada.

Ele ficou desesperado. Ao partir, ela levara-lhe o comando da televisão!

terça-feira, março 20, 2007


Margarida e a Rosa Vermelha

Ela não gostava de rosas. Ele não sabia. Ela nunca lhe dissera que não gostava de rosas. Ele nunca lhe confessara que farejava miragens de mulheres perfeitas no negro do asfalto. Ela detestava esse tipo de homem-cão. Mas nunca lho dissera.

Ele enviou-lhe um botão de rosa pelo correio. Express mail. Para chegar mais depressa.

No dia em que recebeu a encomenda, Margarida decidiu ir ao cinema.Vestiu uma gabardine negra, pôs a rosa na lapela e pintou os lábios de encarnado.Foi numa tarde de chuva e o brilho do asfalto alongava-lhe a silhueta alta e esguia.

Ao sair, Margarida deixou a rosa a florescer na lixeira. E ele ficou a lamber o chão que Margarida pisara.